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terça-feira, junho 10, 2014

MERVAL PEREIRA: Dilma desconstrói a democracia representativa com um decreto eleitoreiro


DESCONSTRUINDO A REPRESENTAÇÃO

Diante da realidade eleitoral que lhe é adversa neste momento, com uma tendência de queda detectada pelas pesquisas, a presidente Dilma cedeu aos radicais do PT para tentar animar os militantes do partido: aceitou discutir uma regulação econômica da atividade, uma das facetas do controle social da mídia, e assinou na surdina um decreto instituindo conselhos populares nos diversos níveis de atuação do governo, passando por cima do Congresso, sobretudo na representação da população nas decisões de governo.

Numa democracia representativa como a que (ainda) temos, esse papel caberia aos parlamentares eleitos pelo voto direto do cidadão, e não a movimentos “institucionais” e mesmo “não institucionalizados”, como previsto no decreto presidencial que está sendo contestado no Congresso. 

Em troca de não colocar em votação um decreto legislativo que anularia o decreto presidencial, o presidente da Câmara Henrique Alves está pedindo que o governo cancele o decreto e submeta a proposta ao Congresso através de um projeto de lei.

Esta parece ser a única maneira viável de aprovar a criação desses conselhos, que ficariam, porém, circunscritos a certas instâncias definidas pelo Congresso, o que retiraria de sua criação o aspecto de “democracia direta” que é o centro da proposta do governo.

Para o filósofo Roberto Romano, o aspecto institucional mais desastroso é justamente o predomínio do Executivo sobre os demais poderes. “Pela enésima vez a Presidência tenta legislar atropelando o Congresso e as instâncias jurídicas apropriadas”, ressalta Romano.

Diante da leniência do Congresso, que troca seu poder por favores pessoais aos congressistas, “já temos uma ditadura do Executivo, se bolivariana, o futuro próximo (muito ligado à eleição ou reeleição do cargo presidencial) dirá”.

Roberto Romano ressalta que “uma coisa é a participação popular, como audiências públicas obrigatórias e outros instrumentos, algo bem diferente é a tese, contida no decreto, segundo a qual mesmo movimentos "não institucionais" podem ter influência direta nas decisões de ordem pública.

“Com o decreto, o que se faz é gerar um Estado na periferia do Estado. Só que ninguém, naqueles movimentos,assumirá responsabilidade oficial pelos erros e possíveis acertos das decisões perante a população como um todo”.

O cientista político Bolivar Lamounier chama também a atenção para a questão da responsabilização das decisões e da necessidade de dar explicações aos cidadãos, características da democracia representativa. 

Parafraseando Sobral Pinto, ele diz que o decreto dos conselhos “tem catinga de fascismo” na sua “flagrante inconstitucionalidade”, pela "indigência intelectual que exala" e por sua "mal disfarçada sonoridade ideológica populo-esquerdóide-fascistóide", calculada para agradar a um certo público interno do PT e a setores externos que não digerem a democracia “burguesa”.

Ele ressalta que no regime democrático, “a participação não é induzida - não se confunde com a arregimentação promovida por regimes populistas, autoritários e totalitários-, mas é sempre bem-vinda”.

O problema, diz Bolivar, é que os setores que demandam a inclusão raramente oferecem ideias úteis sobre como efetivá-la. “Martelam as teclas populo-esquerdóides da “sociedade civil”, dos “movimentos sociais”, dos “plebiscitos”, do “aprofundamento da democracia” etc, mas sempre ferindo acordes bem conhecidos”.

Simplesmente porque considera que a presidente “não pode ser assim tão jejuna em história e teoria política”, Bolivar está convencido de que Dilma “sabe, com certeza, que seus “conselhos populares” outra coisa não são que a velha mistificação corporativista, sindicalista e fascistóide; a ideia de que a “verdadeira” consciência cívica se plasma no convívio com a companheirada; o corolário é o de que o voto, essa “velharia liberal”, é individualista, fragmentador, atomístico etc”.

Tudo faz crer, diz ele, que se trata de um pré-pagamento “que a Dra. Dilma se dispôs a fazer aos setores mais arredios do PT para mantê-los dentro do barco eleitoral, ainda mais com o “Volta Lula” ciscando por aí”.


ELEITOREIRA, NÃO INCONSTITUCIONAL

A decretação pela presidente Dilma Rousseff de uma Política Nacional de Participação Social (PNPS), criando "conselhos populares" sem uma prévia discussão com a sociedade civil e o Congresso, indica uma “democracia eleitoreira”, que restringe a noção de participação somente para os períodos eleitorais, na opinião do constitucionalista e ex-deputado federal Marcelo Cerqueira, e aponta para uma tentativa do PT de organizar os movimentos sociais sobre os quais está perdendo o controle, de acordo com o sociólogo Bernardo Sorj, professor do Instituto de Ciências Avançadas da USP.

No entanto, como afirma Marcelo Cerqueira, a PNPS, “embora feita por decreto, mais uma desagradável contribuição à anomia congressual, não é inconstitucional”.

Para Sorj, se a intenção do governo tivesse sido a de promover uma maior abertura dos órgãos do executivo para com a sociedade civil, “nada a criticar ou comentar”. Mas se o próprio decreto fala de consulta com a sociedade civil, “o óbvio teria sido que ele fosse inicialmente discutido com a mesma”. 

Teria sido suficiente uma diretiva interna instando a um diálogo com os diferentes setores da sociedade civil, que dependendo do órgão do governo podem ser sindicatos, organizações profissionais, ONGs, movimentos sociais, etc. “O problema com a PNPS é sua vontade de definir e subsumir a sociedade civil dentro de um órgão de governo”.

Como a própria PNPS reconhece, ressalta Sorj, a sociedade civil é autônoma, “livre para se organizar, se reinventa constantemente e não pode ser formatada”. Ele cita como exemplo as manifestações, uma das principais formas de expressão da sociedade civil, que não são citadas no decreto, que inclui a Internet, espaço virtual.

Na verdade o decreto não é sobre a sociedade civil, comenta Sorj, e nisto ele vê seu principal problema e fonte de confusão. “O que ele de fato sistematiza e regula são instâncias organizadas pelo governo que seriam os veículos legítimos de comunicação com ele”.

“A participação social numa sociedade democrática sempre será mais ampla e desbordará as instâncias formais que o governo possa estabelecer. Esta tendência estatizante se reflete na linguagem do decreto que confunde várias vezes participação social com as instâncias definidas pelo decreto”, comenta Bernardo Sorj.

A sociedade civil é fundamental para a democracia. O papel da sociedade civil é criticar, denunciar e promover novos direitos, e não comentar políticas de governo: “Renovar a própria política, não pode nem deve ser enlatado numa instância formal decretada pelo governo”, protesta Bernardo Sorj. 

Mas a legitimidade da sociedade civil é de ordem moral, lembra ele, e nisto Sorj vê sua fragilidade e potencial manipulação pelo governo: “ ela pode ter “representantes”, mas não pode ser “representada”. Afinal, se decreto do governo define a sociedade civil como sendo formada por “cidadãos”, então seus representantes são os membros do Congresso e governantes”.

Na opinião do sociólogo Bernard Sorj, o decreto em si mesmo é uma expressão de vontade do governo de manter o controle sobre uma sociedade civil que lhe está fugindo das mãos.

O constitucionalista Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal, por sua vez, lembra que a Constituição de 1988 incorporou o princípio da participação popular direta na administração pública e ampliou a cidadania política, estabelecendo vários mecanismos de reforços às iniciativas populares. “Dessa forma, a gestão pública passaria a contar com a participação daqueles que não detém obrigações legais para com o Estado”.

A sociedade civil, em conjunto com o Poder Público, traçaria as metas a serem atingidas, uma vez que os cidadãos, lembra Cerqueira, mais bem conhecem as reais necessidades locais e poderiam, quem sabe, intervir em favor de seus interesses, nas decisões relacionadas à escolha e gestão de políticas públicas. “Já são feitos, aqui e acolá, orçamentos participativos”.

Marcelo Cerqueira admite que não falta razão à crítica da participação “decretada” vinculada ao período eleitoral, “principalmente em época de campanha, que funciona como “moeda de troca”, em favor do voto”. O desconhecimento das determinações constitucionais “restringe a noção de participação somente para os períodos eleitorais, denunciando a democracia estritamente eleitoreira”.


Artigos de Merval Pereira publicados no O Globo em 09-10/06/2014


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